Há um momento no futebol que deve ser unânime entre torcedores, repórteres esportivos, treinadores e jogadores como o mais tenso de todos: a cobrança de pênalti. Para muitos, o pênalti é uma verdadeira loteria. Para outros, uma grande injustiça. Mas se tem uma situação no jogo de futebol, dentro das quatro linhas, em que a economia melhor poder ajudar a explicar, ela é a cobrança de pênalti. E mais: os pênaltis podem ajudar a compreendermos a teoria dos jogos. Entenda como PSV, Holanda e Alemanha já se deram bem recorrendo a essa estratégia, e como Anelka deu um prejuízo de US$ 170 milhões ao Chelsea por não seguir as orientações recebidas.
A teoria dos jogos é
utilizada para analisar como as estratégias de diferentes agentes interagem em
determinada situação. Os norte-americanos usaram esta teoria de forma exaustiva
durante a Guerra Fria. O governo dos EUA recorria com freqüência à teoria dos
jogos para planejar suas interações com a União Soviética e tentar antecipar os
passos dos soviéticos. Talvez a crise dos mísseis em Cuba seja um dos casos
mais emblemáticos do uso da teoria dos jogos por parte do governo
norte-americano.
Mas o que é, de forma
simplificada, a teoria dos jogos? E como a cobrança de pênalti ajudar a
compreender essa teoria? É que a teoria dos jogos estuda situações de interação
exatamente como a de um cobrador de pênalti frente a frente com um goleiro: o
que eu devo fazer depende do que você faz, e o que você deve fazer depende do
que eu faço. Resumindo: para onde o batedor deve chutar a bola e para onde o
goleiro deve pular? A estratégia de cada um dependerá da ação um do outro.
Renomados economistas,
como, por exemplo, Steve Levitt, autor do livro Freakonomics, já estudaram e publicaram artigos sobre as cobranças
das grandes penalidades. E de que forma os economistas podem ajudar cobradores
de pênaltis e goleiros no momento da mais alta tensão no esporte mais popular
do mundo?
Os teóricos dos jogos
têm condições de criar estratégias para os jogadores de futebol. Engana-se quem
pensa que esse é um tema restrito somente à teoria e que dificilmente se
verifica na prática. Clubes e seleções já recorreram aos dados de economistas e
estudiosos para traçarem suas estratégias em casos de decisões por pênaltis.
Com o tempo,
cobradores de pênaltis e goleiros constroem um histórico de suas estratégias.
Basta um olhar mais atento e uma dedicação a analisar os jogos de seus
adversários em partidas decisivas para se levantar um banco de dados com os
hábitos dos principais cobradores de pênaltis e dos goleiros oponentes. Foi o
que Steve Levitt e seus colegas economistas fizeram. Eles perceberam que
determinado goleiro sempre pulava para o lado esquerdo ou que um certo cobrador
costumava bater sempre no canto direito, rente ao chão ou a meia altura. E por
aí vai.
Em 1988, o PSV Eindhoven
decidiu a Copa dos Campeões da Europa com o Benfica, na cidade alemã de
Stuttgart. Antes da grande decisão, o goleiro do PSV, Hans van Breukelen,
telefonou para o técnico Jan Reker, detentor de um banco de dados sobre
cobranças de pênaltis. Todas as cinco primeiras cobranças do Benfica foram
convertidas. Van Breukelen defendeu a sexta, cobrada por Veloso. O PSV foi
campeão europeu.
Cético, você poderá
dizer que tudo não passou de mera coincidência, afinal de contas cinco
cobranças do Benfica foram bem sucedidas e apenas a sexta é que foi defendida
pelo goleiro do PSV. Tudo bem. Pode ter sido apenas coincidência. Acontece que
no mês seguinte, a Holanda batia a União Soviética por 2 a 0, na final da Euro
1988. Van Breukelen cometeu um pênalti. Se os soviéticos diminuíssem o jogo
poderia mudar de figura. O goleiro, mais uma vez, recorreu ao banco de dados de
Reken e... Defendeu o pênalti cobrado por Igor Belanov. Esse é, até hoje, o
único grande título da seleção holandesa.
Em 2006, Alemanha e
Argentina se enfrentaram nas quartas de final da Copa sediada na Alemanha. A
decisão da vaga na semifinal terminou indo para os pênaltis. Os alemães tinham
uma base de dados de 13 mil chutes. Sim, 13 mil! O goleiro Jens Lehmann foi
para o seu gol com uma cola guardada no meião. Na cola, uma lista com a forma
como sete jogadores argentinos cobravam seus pênaltis. Dos sete, apenas dois
foram cobrar. Um deles, Ayala, cumpriu à risca o que estava anotado na cola de Lehmann:
após esperar muito tempo, deu uma longa corrida e chutou para a direita.
Lehmann defendeu.
O último argentino a
cobrar foi Cambiasso. A decisão estava 4 a 2 para a Alemanha. Lehmann consultou
sua cola. O papel amassado, suado e escrito a lápis impediu que o goleiro
compreendesse o que estava na lista. Cambiasso percebeu a movimentação de
Lehmann e que ele consultava algo. Aí entra a teoria dos jogos e a pressão.
Certamente Cambiasso pensou – “o que ele sabe? Será que ele sabe onde vou
bater?”. Intimidado, Cambiasso teve sua cobrança defendida por Lehmann e a
Alemanha avançou para a semifinal da Copa.
Anelka e o pênalti de US$ 170 milhões
Eis que chegamos ao
francês Nicolas Anelka e à decisão por pênaltis da Liga dos Campeões da Europa
de 2008, que envolveu os ingleses Manchester United e Chelsea. O treinador dos
Blues era o israelense Avram Grant, amigo de um professor de uma universidade
israelense, que, por sua vez, era muito amigo do economista basco Ignacio
Palacios-Huerta.
Ignacio começou a
estudar cobranças de pênaltis em 1995, ainda estudante da Universidade de
Chigado e publicou um estudo sobre o tema em 2003. O amigo de Avram Grant
colocou os dois em contato, pensando que Ignacio poderia ajudar o Chelsea de
Grant com seu banco de dados.
O economista basco
enviou para Grant um relatório e transcrevo os quatro comentários que ele fez
sobre o Manchester United e as cobranças de pênaltis.
1 - Van der Sar tendia
a saltar para o “lado natural” do cobrador mais vezes do que a maioria dos
goleiros. Ou seja: diante de um cobrador destro, ele saltaria para a sua
direita; diante de um canhoto, saltaria para a sua esquerda. Portanto, os
jogadores do Chelsea deveriam cobrar para o “lado não natural”.
2 - A imensa maioria
dos pênaltis defendidos por Van der Sar são chutados a meia-altura. Pênaltis
contra ele deveriam ser cobrados junto ao solo ou altos.
3 - Ronaldo com freqüência
dá uma parada na corrida para a bola. Se ele parar, provavelmente (85% de
chances) chutará do lado direito do goleiro. E enfatizou: Ronaldo pode mudar de
ideia no último instante. O goleiro não podia se antecipar, caso o fizesse, ele
sempre marcava.
4 - O time que vencer
o sorteio antes da cobrança deve escolher cobrar primeiro. Mas isso é banal:
sempre se deve cobrar primeiro. Times que cobram primeiro vencem 60% das vezes,
presumivelmente porque há muita pressão sobre o segundo a cobrar, que sempre
precisa marcar para salvar o jogo.
O Manchester United
venceu o sorteio. O capitão dos Red Devils, Rio Ferdinand, escolheu,
logicamente, que seu time iniciaria as cobranças.
Vejam as cobraças no vídeo abaixo e eu já volto com alguns
comentários.
Viram como Ballack e
Belletti seguiram as orientações de Ignacio? O alemão cobrou alto à esquerda de
Van der Sar, enquanto o brasileiro mandou a bola junto ao chão, também à esquerda
do goleiro holandês.
E então foi a vez de
Cristiano Ronaldo partir para a bola. E o que faz o português? Exatamente
aquilo que Ignacio previra: dá uma parada na corrida e manda a bola no lado
direito do goleiro. O que fez Petr Cech? Seguiu o conselho do economista basco:
ele não deveria se antecipar e não se antecipou. Cech esperou a cobrança, que
veio no seu lado direito e defendeu. Voltem
ao vídeo. Revejam o lance. Pois é.
Na sequência, mais
quatro cobranças do Chelsea, todas seguindo as orientações de Ignacio.
Inclusive John Terry com sua célebre escorregada na grama molhada. Van der Sar
saltou para o lado direito. Terry mandou alto, no lado esquerdo. Mas escorregou.
A bola bateu na trave e saiu.
Chega a vez da sétima
cobrança do Chelsea. O francês Nicolas Anelka vai para a bola. Se ele perde, o
United é campeão. Naquele momento, Van der Sar já havia percebido que o Chelsea
adotara uma estratégia para a cobrança de pênaltis. Provavelmente, ele pensou
que os adversários optaram bater sempre para o seu lado esquerdo. O holandês
chega a apontar para o lado esquerdo, como quem diz a Anelka “eu sei que você
vai bater aqui”.
E é nesse momento que
entra a teoria dos jogos. Anelka sabia que Van der Sar sabia que Anelka sabia
que Van der Sar costumava saltar para a direita quando estava diante de
jogadores destros. Imaginem essa tensão
no momento em que você tem, em seus pés, a chance de manter seu time na luta
pelo principal título de clubes do futebol mundial ou de decretar sua derrota.
Ignacio havia
recomendado que jogadores destros cobrassem para o lado esquerdo de Van der
Sar. Mas Anelka ficou intimidado com a postura de Van der Sar. O francês,
então, resolveu não seguir as orientações do economista basco. O que ele faz?
Muda o lado. Decide bater para o canto direito do goleiro holandês, aquele em
que ele tinha maior facilidade para defender pênaltis cobrados por destros.
A estratégia de Anelka
até poderia ter dado certo. Mas não deu. Qual foi o motivo? Voltem ao vídeo. Viram? O francês bateu
a meia-altura. Ignacio havia escrito em seu relatório: “a imensa maioria dos pênaltis defendidos por Van der Sar são chutados a
meia-altura. Pênaltis contra ele deveriam ser cobrados junto ao solo ou altos.”
Anelka cobrou a meia-altura. Van der Sar defendeu, como sempre costumava fazer
em bolas a meia-altura. E o Chelsea deixou de faturar, segundo analistas, cerca
de US$ 170 milhões.
Os jogadores de
futebol seguem uma tendência quando vão cobrar pênaltis. Todos têm um lado
preferencial. Assim como os goleiros têm um lado para o qual costumam saltar
mais ou terem maior facilidade para defender. Os pênaltis, contudo, são
aleatórios. E é essa aleatoriedade na cobrança de pênaltis que torna esse
momento tão tenso e emotivo. Não há cálculos, nem banco de dados, que possam
prever para que lado vai cobrar um bom
profissional, que saiba executar com precisão a sua cobrança.
Que o diga Franck Ribéry. O francês do Bayern Munique é um dos poucos jogadores que, ao partir para a bola, não tem definido para que lado baterá. Ribéry é um profissional exemplar e também o elemento capaz de quebrar toda a teoria dos jogos.
Que o diga Franck Ribéry. O francês do Bayern Munique é um dos poucos jogadores que, ao partir para a bola, não tem definido para que lado baterá. Ribéry é um profissional exemplar e também o elemento capaz de quebrar toda a teoria dos jogos.
Porém, com a teoria dos jogos, e mesmo com a aleatoriedade e principalmente por conta dos bons profissionais,
torna-se simplório afirmar que pênalti é loteria e injusto dizer que os pênaltis
são uma injustiça.