Time do América campeão pernambucano em 1944, o último que fez o poeta João Cabral de Melo Neto gritar "campeão". |
Emanuel Leite Jr.
O torcedor do América
F. C.
O desábito de vencer
não cria o calo da vitória;
não dá à vitória o fio cego
nem lhe cansa as molas nervosas.
Guarda-a sem mofo: coisa fresca,
pele sensível, núbil, nova,
ácida à língua qual cajá,
salto do sol no Cais da Aurora.
Tradicional clube recifense, o
América é o quarto maior campeão do futebol pernambucano, com seus seis títulos
estaduais. O último, porém, conquistado em fevereiro de 1945, válido pela
edição de 1944 - “coisas deste futebol brasileiro, que nunca foi muito sério”,
como bem disse João Cabral de Melo Neto, em carta a Manuel Bandeira. De lá para
cá, o Mequinha perdeu sua força e jamais voltou a deixar o “Recife coberto de
verde”. Ontem, 10 de novembro de 2013, o América voltou a disputar uma final de
estadual depois de 63 anos. É verdade que se tratava da decisão da Série A2.
Entretanto, valia um título, feito que o Periquito não alcançava há 69 anos. O
Esmeraldino, contudo perdeu. Nos pênaltis, para o Acadêmica Vitória. Mais um
ano de jejum em sua história. E, mais uma vez, o time pelo qual pulsava o
coração de João Cabral de Melo Neto foi vítima da armadilha que próprio poeta
tentou fazer com o “Criador”.
Poeta e diplomata, João Cabral de
Melo Neto foi um dos maiores poetas da língua portuguesa no Século XX. Culto, o
escritor era fluente em inglês, francês, espanhol e catalão, além de ser um
“patriota da língua pernambucana”, como ele mesmo gostava de dizer. Mas além da
paixão pelas manifestações estéticas da percepção e emoção através da
literatura, pintura, ou do teatro, aquilo que chamam de arte, o imortal -
membro das Academias de Letras do Brasil e de Pernambuco - João Cabral nutria
uma paixão por outra forma de arte: o futebol brasileiro - “você assiste porque
é um espetáculo bonito”, afirmou em entrevista quando morava na França,
justificando seu desinteresse pelo futebol “em que não se vê uma jogada
maliciosa, um gesto harmônico e nem elegância” dos europeus.
Como todo apaixonado pelo futebol,
João Cabral de Melo Neto tinha um clube de coração. Este clube era o América,
pelo qual chegou a jogar o Pernambucano de Juvenil de 1935. E foi movido pela
emoção que seu América lhe causava, que o poeta confidenciou em carta ao primo
Manuel Bandeira uma armadilha que tentara pregar a Deus. Recorrendo ao
sobrenatural, “um surto de superstição. Uma perda momentânea da razão”, João
Cabral, crente de que o América não seria capaz de bater o Náutico na final do
Pernambucano de 1944, desafiou.
“Quando o ano começou e foram
anunciadas as partidas decisivas, absolutamente certo de que o Náutico seria
campeão, chamei o Criador para uma armadilha. Disse-lhe que, caso o meu América
vencesse, eu me daria por satisfeito. Poderia ser o último título conquistado.
Poderia não ser campeão mais nunca. Eu ficaria feliz com aquele título.”
João Cabral, vivendo no Rio de
Janeiro, seguiu atentamente todas as notícias que chegavam do Recife acerca de
cada jogo da grande final, decidida em quatro partidas. Para o poeta, aquela
brincadeira particular com Deus não passaria de um experiência literária -
“como Deus não existe, ou não haveria essa vida Severina (gostei da expressão,
talvez eu torne a usá-la no futuro), seria um mera experiência literária.”
No dia da última partida, 18 de
fevereiro de 1944, João Cabral se trancou em seu quarto, leu muito e dormiu
pouco. Ansioso para que os minutos passassem, as horas se fossem e chegasse,
finalmente, o momento de saber se o América fora ou não campeão pernambucano.
“Não cogitava que poderes sobrenaturais controlassem uma pelota, vinte e dois
homens e um mero jogo. Mal disfarçando, porém, um certo nervosismo, escutei
quando alguem gritou lá de dentro que mandassem me avisar: O América era
campeão pernambucano!”
O América vencera o Náutico por
incontestáveis 3 a 0 na Ilha do Retiro, estádio do Sport. “Enlouqueci, Manuel.
Confesso que perdi meu prumo durante alguns instantes, e caso estivesse em
Recife, teria sido uma festa. Imaginei Recife coberto de verde”, celebrou o
poeta.
Preocupado com sua pequena aposta com
Deus, João Cabral tentou relativizar a possível interferência divina na decisão
do Pernambucano. “Agora reestabelecido e feliz, eu sei que tudo não passou de
um surto de superstição. Uma insanidade temporária. Uma perda monentânea da
razão. O América era de fato um esquadrão invencível. Ano que vem será, aliás
daqui a alguns meses, será bicampeão. Hoje somos os campeões de 1944, mesmo
estando em 1945. Coisas deste futebol brasileiro, que nunca foi muito sério”,
escreveu, antes de finalizar. “Deus, se é que existe, deve estar cuidando de
outras coisas bem mais importantes.”
Em 1945, o América foi vice-campeão
pernambucano, somando um ponto a menos que o campeão Náutico, na fase final:
16x15. Em 1947, o Esmeraldino foi derrotado pelo Santa Cruz na final. Em 1948,
nova decisão de estadual e outra derrota, desta vez para o Sport. Dois anos
depois, mais uma final contra o Náutico. Mais uma derrota. 1952… Mais um
vice-campeonato, com seu grande rival Náutico sendo novamente campeão.
João Cabral de Melo Neto faleceu em
1999. Foi enterrado encoberto com a bandeira do América. Arnaldo Niskier
afirmou, em discurso no "Salão dos Poetas Românticos", na Academia
Brasileira de Letras, onde foi velado o corpo do poeta pernambucano.
"Fecham-se os olhos cansados do poeta João e não conseguimos realizar o
sonho que agora desvendo: ver o América Futebol Clube voltar aos seus dias de
glória. Nem o daqui do Rio, nem aquele que era a sua verdadeira paixão: o
América do Recife."
Ontem o América voltou a disputar uma
final. A primeira desde a decisão do Pernambucano de 1950. E, como se fosse uma
maldição, assim como todas as finais disputadas desde 18 de fevereiro de 1945,
o América saiu de campo derrotado.
"Há os que gostam de ver futebol
porque gostam de ver o time predileto ganhar. Mas acontece que meu clube é o
América. Ganha tão pouco... Então, gosto de futebol não para ganhar. Gosto pelo
espetáculo”, João Cabral de Melo Neto.
A íntegra da carta de João Cabral de Melo Neto a Manuel Bandeira.
Prezado
Manuel,
Ontem, fui
dormir feliz. De longe chegou a notícia que o meu querido América vencera o
Náutico por 3x0. Em quatro jogos decisivos, três vitórias maiúsculas. O que
mais posso eu desejar dessa vida? Apenas me dói o fato de nao estar no Recife.
Soube que uma multidão conduziu nossos jogadores até o Bar Savoy. Soube que a
Ilha do Retiro foi pequena para acomodar tantos quantos quiseram assistir nosso
momento de glória.
Sabe que
como me arrependo de ter jogado pelo Santa Cruz. Eu queria, na verdade, usar o
manto verde e branco. Mas eram coisas da idade.
Manuel, mas
apresso-me em te contar. Eu, que como sabes, sou o mais descrente dos crentes,
cansado de tantas derrotas durante tantos anos, decidi provocar o Criador.
Quando o ano
começou e foram anunciadas as partidas decisivas, absolutamente certo de que o
Náutico seria campeão, chamei o Criador para uma armadilha. Disse-lhe que, caso
o meu América vencesse, eu me daria por satisfeito. Poderia ser o último título
conquistado. Poderia não ser campeão mais nunca. Eu ficaria feliz com aquele
título.
Como Deus
não existe, ou não haveria essa vida Severina (gostei da expressão, talvez eu
torne a usá-la no futuro), seria um mera experiência literária.
No primeiro
jogo dessa absurda e interminável disputa final, o inesperado acontece: O
América triunfa!
Calei em meu
canto, desconfiado. Mas não havia de ser nada. Quase que torcendo contra meu
time do coração, aguardei o resultado da segunda peleja. Menos mal, o universo
parecia estar voltando para o seu lugar devido. E, durante um certo tempo,
acalentei novamente a certeza no meu mundo material. Pois, tu sabes, a
inspiração eu deixo contigo. Não me deixo levar por esta quimera.
Manuel.
Chegou então o momento do terceiro jogo. Acordei convicto de que ali terminavam
minhas dúvidas metafísicas. E o América venceu novamente!
Tranquei-me
em mim mesmo. O mundo inteiro em guerra e eu convalescendo de uma absurda
dúvida existencial.
Conto a ti
estas coisas, pois sei que somos diferentes. Tens inspiração, lirismo,
lembranças que eu não consigo ter. Quem sabe, tens até fé em Deus? Não essa fé
social, mas uma fé real, idealista. Eu lia versos de Cordel para empregados lá
do engenho, eu tinha pena deles, mas uma pena racional. Uma pena da vida e da
morte daqueles pobres diabos. Que já vivem no inferno.
Mas agora,
tratava-se de um fato totalmente diverso. Os céus subitamente ganhavam vida. E
o América, subitamente, parecia uma máquina de platina de jogar futebol. Ia
triturando os alvirrubros. Sem dó nem piedade.
No dia de
ontem, fui para meu quarto e lá me tranquei. Li muito. Dormi um pouco. E quando
as horas do jogo se escoaram, busquei saber notícias do Recife. Estavam
novamente racional. Não cogitava que poderes sobrenaturais controlassem uma
pelota, vinte e dois homens e um mero jogo. Mal disfarçando, porem, um certo
nervosismo, escutei quando alguem gritou lá de dentro que mandassem me avisar:
O América era campeão pernambucano!
Enlouqueci,
Manuel. Confesso que perdi meu prumo durante alguns instantes, e caso estivesse
em Recife, teria sido uma festa. Imaginei Recife coberto de verde. Vou querer
pintar o Bar Amarelinho com outras cores amanhã. E diabos, ninguém conhece meu
América aqui no Rio!
Agora
reestabelecido e feliz, eu sei que tudo não passou de um surto de superstição.
Uma insanidade temporária. Uma perda monentânea da razão. O América era de fato
um esquadrão invencível. Ano que vem será, aliás daqui a alguns meses, será
bicampeão. Hoje somos os campeões de 1944, mesmo estando em 1945. Coisas deste futebol
brasileiro, que nunca foi muito sério.
Deus, se é
que existe, deve estar cuidando de outras coisas bem mais importantes.
Um abraço,
meu caro Manuel Bandeira,
Do seu
primo,
João Cabral
de Melo Neto.
PS: Perdão
se na emoção que agora sinto, a cronologia dos fatos houver me traído a
memória. Em tempo, nosso primo Gilberto deve estar descabelando com as derrotas
do seu Esporte! (atual Sport Recife).