Hoje
começa mais um Campeonato Brasileiro de futebol. Esta será a décima edição do
Brasileirão no formato de pontos corridos, sistema de disputa que foi adotado a
partir de 2003, e que teve o Cruzeiro como campeão em sua primeira edição, com
uma campanha até hoje inigualável – 100 pontos conquistados, aproveitamento de
72,4% (em termos de aproveitamento de pontos, o São Paulo chegou mais perto em
2006, com 68,42%).
A
alteração do sistema sempre foi tema de muita discussão no Brasil. Antes mesmo
da mudança para os pontos corridos e até os dias de hoje, este é um assunto que
gera muita controvérsia, dividindo opiniões.
O
sistema de pontos corridos prima a organização e a planejamento; premiação ao
mérito de quem traça um planejamento em busca da regularidade. Prevalece,
portanto, a meritocracia, na medida em que se permite ao clube mais regular
(aquele que trabalha arduamente ao longo de todo o campeonato) ter maior
probabilidade de se sagrar campeão.
Em
contrapartida, o sistema de mata-mata é mais suscetível a distorções como um
clube menos organizado e com uma campanha menos regular – muitas das vezes
medíocre – possa, a partir de dada altura da competição, ainda almejar o
título.
É
importante esclarecer que aqui se estão a discutir os campeonatos nacionais,
certames que, a princípio, pressupõem-se de longa duração. Não se estão
questionando as copas e os torneios de tiro-curto (por exemplo, Copa do
Brasil). Não confundir campeonatos com
copas é extremamente essencial.
Antes
de se chegar ao que determina o Estatuto do Torcedor acerca do sistema de disputa
do Brasileirão, o texto trará uma crítica ao sistema de mata-mata e uma análise
comparativa dos modelos desportivos dos Estados Unidos e da Europa, a fim de
tentar compreender qual o modelo que mais se assemelha ao brasileiro.
- Critica aos campeonatos nacionais de
mata-mata
Em
um campeonato de mata-mata era possível ver um clube que fez campanha medíocre
na primeira fase, classificando-se em 8º colocado e apenas na última rodada,
ter chances de ser campeão.
E
não é preciso recuar muito no tempo para se encontrar um exemplo desta
distorção competitiva.
Em
2002, o último Brasileirão com mata-mata, o Santos foi campeão brasileiro após
ficar em 8º lugar (classificação alcançada apenas na última rodada) com 39
pontos (medíocre campanha em que a soma de empates e derrotas – 14 – foi maior
que a de vitórias – 11). O Santos, logo na primeira fase do “mata-mata”,
eliminou o São Paulo, líder absoluto da primeira fase (em que todos os clubes
se enfrentavam) com 52 pontos. A pontuação do São Paulo, na primeira fase,
havia o deixado 13 pontos à frente do Santos; cinco do 2º colocado, São Caetano;
e nove do 3º, Corinthians.
O
São Paulo, por sinal, teve um aproveitamento de 69,33% dos pontos (mais do que
qualquer campeão brasileiro dos pontos corridos, exceção feita ao Cruzeiro em
2003, como já foi dito no começo do texto).
Mas
o São Paulo não foi campeão. Muito por conta do regulamento de mata-mata que
permitia esse tipo de distorções. O campeão foi o Santos, de campanha medíocre
na primeira fase, com os mesmos 39 pontos do 9º colocado (e eliminado)
Cruzeiro.
Para
os que gostam da improbabilidade e “emoção” do mata-mata (como se um campeonato
de pontos corridos não fosse emocionante, que o digam os torcedores do
Manchester City), há sempre a possibilidade de acompanharem as copas ou
torneios de tiro-curto (com menos datas), como é a Copa do Brasil – torneio
que, inclusive, presta bem esse serviço de permitir a um clube menor chegar a
um título nacional, a exemplos de Paulista e Santo André.
- Modelos desportivos: EUA vs. Europa
(e o Brasil?)
Em
meio ao debate “pontos corridos vs. mata-mata” é recorrente argumentos do
gênero – “nos EUA, onde o esporte é tratado como um negócio lucrativo, os
torneios são decididos em mata-mata”.
É
falacioso afirmar ou dar a entender que apenas nos Estados Unidos o esporte é
um negócio lucrativo. Basta citar a Premier League inglesa, maior liga de
futebol do Mundo (em faturamento) e que, em 2009, chegou ao posto de terceira maior
liga desportiva do planeta, ultrapassando a NBA (liga norte-americana
de basquete).
Ultrapassada
a falácia do “negócio lucrativo”, passa-se a enfrentar outro ponto, este sim
mais importante – o modelo desportivo.
Os
EUA têm um modelo desportivo bastante peculiar, completamente distinto do
europeu (e, também, do brasileiro). São inúmeras as diferenças, como: relação
com o poder público; estrutura; forma de competições; e objetivos.
I. Relação com o poder público:
Nos
EUA o modelo é totalmente privado, sem qualquer interferência do poder público.
Enquanto
na Europa, seja em países como Itália, Espanha e Portugal (com maior
intervenção pública) ou em países como Inglaterra e Alemanha (com maior
abstencionismo estatal), há uma relação mais estreita com o poder público, que
intervém na organização “jurídico-desportiva”.
Nesse
quesito, o Brasil se assemelha ao modelo europeu, com a intervenção pública na
esfera desportiva, como se verifica em leis como a Lei Pelé ou o Estatuto do
Torcedor e, também, em programas como a Timemania.
II. Estrutura:
O
modelo desportivo dos EUA não valoriza competições internacionais (é comum eles
denominarem seus campeões nacionais de “World Champions”) e possui pouca
relação com as federações internacionais. É a chamada estrutura horizontal.
Na
Europa, por sua vez, o corpo diretivo é monopolizado, juridicamente, pelas
Federações Nacionais, com vinculações às Federações Internacionais. É a estrutura piramidal.
No
Brasil, e mais especificamente no futebol, existem as Federações Estaduais
(FPF/PE ou FPF/SP, por ex.), que são ligadas à Federação Nacional (CBF), a
qual, por seu turno, está vinculada diretamente a uma Federação Internacional
(FIFA).
Portanto,
em mais um ponto, vê-se que o modelo brasileiro é muito semelhante ao europeu.
III. Forma de Competições:
As
competições dos EUA são fechadas e sem mobilidade, não havendo a previsão de ascenso
ou descenso e, por isso, tendo regularmente a participação das mesmas
agremiações que adquirem o direito de participação através das franquias. Não
existe, portanto, ascensão ou rebaixamento – uma equipe pode ser a última
classificada da competição e continuará a disputá-la no ano seguinte. É o sistema horizontal.
O
modelo europeu encontra seus pressupostos no mérito desportivo, quer dizer, na
obtenção dos resultados desportivos em uma competição a fim de se ascender ou
descender, bem como de se obter classificação a uma competição internacional.
As
competições ocorrem simultaneamente, e um clube pode ser campeão ou chegar a
uma competição internacional, como, ao mesmo tempo, corre o risco de ser
rebaixado; enquanto que um clube de divisão hierárquica inferior pode ascender
através de suas conquistas desportivas e, um dia, almejar chegar a uma
competição internacional. É o sistema
vertical.
A
forma de competição brasileira é idêntica à europeia. No Brasil, há divisões
hierárquicas no futebol – tanto em competições nacionais quanto estaduais – e
as competições nacionais permitem aos clubes participantes chegarem a
competições internacionais (o Campeonato Brasileiro da Série A e a Copa do
Brasil dão acesso à Copa Libertadores, organizada pela Conmebol; a Libertadores,
por sua vez, dá vaga no Mundial de Clubes FIFA).
E
é nesse ponto que o Brasil se diferencia e distancia ainda mais do modelo
desportivo dos EUA. O Brasil (assim como os europeus) prima pela mobilidade – a
possibilidade de ascensão hierárquica. Já os EUA têm uma forma mais elitista –
fechada em si mesma, com a única possibilidade de inserção encontrada através
de aquisição de franquia (ou seja, a venda de um espaço na competição).
O
formato brasileiro é muito mais democrático, ao ser aberto e interdependente,
permitindo a mobilidade.
Por
mais que essa mobilidade possa incomodar a alguns setores mais elitistas
brasileiros e a um certo grupo de clubes (que por anos se acostumou a viradas
de mesa que feriam, diretamente, a competitividade e o espírito esportivo
baseado no mérito da obtenção de resultados desportivos), é este o formato de
competição no Brasil.
IV. Objetivos:
Nos
EUA, os objetivos econômicos ou a busca pelo lucro estão claramente acima dos
objetivos desportivos. Lá as competições são tratadas, antes de qualquer coisa,
como um negócio.
Na
Europa, o objetivo é desportivo – a busca por vitórias e títulos. O sucesso
desportivo (ganhar jogos, ser campeão) está acima do sucesso econômico. O lucro
é importante, mas o lado desportivo prepondera sobre o econômico.
Verifica-se,
portanto, que os objetivos das competições na Europa são os mesmo do Brasil. A lógica
desportiva brasileira é pela primazia das vitórias e dos títulos e não a
preferência pelo lucro.
Então,
ante o exposto, conclui-se que se temos um modelo desportivo semelhante ao
europeu; se temos uma estrutura vertical (como na Europa) e vemos o futebol sob
a lógica da mobilidade (através da obtenção dos resultados desportivos) e da
primazia pelas conquistas desportivas (vitórias e títulos) e não pelo lucro
(econômico), nada mais racional e natural adotarmos o sistema de competição que
é bem sucedido na Europa, ou seja, o sistema de pontos corridos.
Seria
extremamente insensato e incoerente se o Brasil adotasse um sistema de competição
baseado em um modelo desportivo tão diferente do nosso.
O
Brasil tem uma cultura de modelo desportivo que encontra suas fundações mais
profundas na lógica da obtenção dos resultados desportivos, e o sistema de pontos
corridos prima pelo reconhecimento ao mérito desportivo – a preponderância do
trabalho árduo e regular ao longo de toda a competição.
- Estatuto do Torcedor
O
Estatuto do Torcedor, Lei Federal 10.671/2003 (com alterações dadas pela Lei
12.299/2010), tem por escopo a moralização do futebol brasileiro, visando à
proteção do torcedor enquanto cidadão e consumidor – garantias de respeito aos
regulamentos (objetivos desportivos); segurança e comodidade nas praças
desportivas; etc..
Anteriormente,
no ponto em que se analisaram os modelos desportivos, referenciou-se que o
modelo brasileiro segue o europeu no sentido de haver uma relação em que o
poder público intervém na ordem jurídico-desportiva a fim de garantir a
organização do desporto.
Pois
bem, estamos diante de um exemplo inequívoco de ingerência do poder público no
desporto nacional. O nosso Legislativo percebeu a necessidade de intervir no
desporto nacional em questões como os regulamentos das competições e a
segurança dos torcedores e o Estatuto do Torcedor é fruto desta intervenção do poder
público. Intervenção necessária e muito bem vinda, diga-se de passagem.
Acontece,
entretanto, que em muitas discussões sobre futebol vê-se o completo
esquecimento da lei que “estabelece normas de proteção e defesa do torcedor”
(art, 1º do referido Estatuto).
Infelizmente,
neste debate entre “pontos corridos e mata-mata” a situação não é diferente. Há
quem insista em discutir o assunto sem sequer mencionar a existência de tal norma
legal.
Aqueles
que querem discutir uma nova mudança na fórmula de disputa (defensores do
retorno ao mata-mata) têm que se articular para que o Estatuto do Torcedor
sofra uma nova alteração, a fim de que se flexibilize esse ponto na lei.
Vejamos
o que diz o texto da lei, ipsis litteris:
“Art. 8º. As competições de atletas
profissionais de que participem entidades integrantes da organização desportiva
do País deverão ser promovidas de acordo com calendário anual de eventos
oficiais que:
(...)
II – adote, em pelo menos uma
competição de âmbito nacional, sistema de disputa em que as equipes
participantes conheçam, previamente ao seu início, a quantidade de partidas que
disputarão, bem como seus adversários”.
Embora
a lei não fale diretamente que a fórmula de disputa deva ser de pontos corridos,
esse entendimento é de fácil elucidação, bastando para tal uma interpretação
simples da imposição legal. O inciso II do art. 8º da lei fala em:
1. Competição
nacional.
2. Sistema
de disputa em que as equipes participantes saibam previamente:
a) Quantidade
de partidas que disputarão.
b) Os
seus adversários.
Em
qual sistema de disputa é possível os clubes saberem previamente quantas
partidas realizarão e quais serão todos os seus adversários?
Isto
seria possível em um sistema de disputa de mata-mata? É evidente que não.
Em
uma Copa do Brasil, por exemplo, um clube sabe que poderá disputar de X a Y
partidas; e que poderá enfrentar o adversário A, B, C, G, H ou I, a depender
dos resultados.
Nos
campeonatos brasileiros que eram disputados no sistema de mata-mata, um clube
começava a competição sabendo que disputaria X partidas, mas que esse número
poderia ser maior se fosse para a fase seguinte (ou, eventualmente, houvesse
alguma repescagem ou coisa do gênero, como já ocorreu em alguns regulamentos).
Contudo, jamais poderia prever quais seriam os adversários nas fases de mata-mata
ou mesmo precisar o número de jogos a ser disputado ao longo da competição.
Apenas
um campeonato de pontos corridos permite a todos os clubes participantes saberem,
previamente, quantos jogos disputarão e quais serão os seus adversários.
Qual
o sistema que dá aos clubes uma maior possibilidade de planejamento (tanto
desportivo quanto financeiro – vendas de lugares anuais, promoções de
marketing, etc.) aos clubes, o de pontos corridos ou de mata-mata?
A
resposta é óbvia: pontos corridos.
Foi
neste sentido, que os legisladores pátrios procuraram orientar e organizar o
nosso ordenamento jurídico-desportivo: garantir a todos os clubes uma maior
estabilidade e segurança, à medida que lhes concedem garantias prévias de
planejamento, a fim de obterem, através de competência na gestão desportiva, os
maiores proveitos desportivos e financeiros.
E
é aí se encontra o mais forte argumento favorável aos pontos corridos, a primazia
ao planejamento e à organização dos clubes.
- Conclusão:
Pode-se
afirmar que para retornar ao sistema de mata-mata é necessária uma alteração no
Estatuto do Torcedor, tornando, portando, toda a discussão atual inócua se não
se atentar, antes de tudo, a esta limitação legal.
Além
da questão legal, é preciso lembrar que o sistema de disputa de pontos corridos
está em concordância com toda a lógica da organização jurídico-desportiva
nacional, que adota em todas as esferas desportivas, futebol incluído, o modelo
desportivo europeu, no qual se preponderam os resultados desportivos e um
sistema mais democrático em que se prima pela mobilidade hierárquica dos clubes
em detrimento de um sistema elitista, que prioriza o poder financeiro em
detrimento dos resultados e das conquistas desportivas.
Concluindo,
é preciso ter em mente que o sistema de pontos corridos não é uma mera
imposição legal, mas a conseqüência lógica de toda uma estrutura de modelo
desportivo. Afinal, a lei (como é o caso do Estatuto do Torcedor) existe dentro
de uma lógica – e a adoção dos pontos corridos é fruto natural de um modelo
desportivo adotado nacionalmente. É a racionalidade e a lógica acima do
contrassenso.
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