sábado, 19 de maio de 2012

Pontos corridos vs. Mata-mata: os sistemas de disputa à luz dos modelos desportivos e do Estatuto do Torcedor



Hoje começa mais um Campeonato Brasileiro de futebol. Esta será a décima edição do Brasileirão no formato de pontos corridos, sistema de disputa que foi adotado a partir de 2003, e que teve o Cruzeiro como campeão em sua primeira edição, com uma campanha até hoje inigualável – 100 pontos conquistados, aproveitamento de 72,4% (em termos de aproveitamento de pontos, o São Paulo chegou mais perto em 2006, com 68,42%).

A alteração do sistema sempre foi tema de muita discussão no Brasil. Antes mesmo da mudança para os pontos corridos e até os dias de hoje, este é um assunto que gera muita controvérsia, dividindo opiniões.

O sistema de pontos corridos prima a organização e a planejamento; premiação ao mérito de quem traça um planejamento em busca da regularidade. Prevalece, portanto, a meritocracia, na medida em que se permite ao clube mais regular (aquele que trabalha arduamente ao longo de todo o campeonato) ter maior probabilidade de se sagrar campeão.

Em contrapartida, o sistema de mata-mata é mais suscetível a distorções como um clube menos organizado e com uma campanha menos regular – muitas das vezes medíocre – possa, a partir de dada altura da competição, ainda almejar o título.

É importante esclarecer que aqui se estão a discutir os campeonatos nacionais, certames que, a princípio, pressupõem-se de longa duração. Não se estão questionando as copas e os torneios de tiro-curto (por exemplo, Copa do Brasil). Não confundir campeonatos com copas é extremamente essencial.

Antes de se chegar ao que determina o Estatuto do Torcedor acerca do sistema de disputa do Brasileirão, o texto trará uma crítica ao sistema de mata-mata e uma análise comparativa dos modelos desportivos dos Estados Unidos e da Europa, a fim de tentar compreender qual o modelo que mais se assemelha ao brasileiro.

- Critica aos campeonatos nacionais de mata-mata

Em um campeonato de mata-mata era possível ver um clube que fez campanha medíocre na primeira fase, classificando-se em 8º colocado e apenas na última rodada, ter chances de ser campeão.

E não é preciso recuar muito no tempo para se encontrar um exemplo desta distorção competitiva.

Em 2002, o último Brasileirão com mata-mata, o Santos foi campeão brasileiro após ficar em 8º lugar (classificação alcançada apenas na última rodada) com 39 pontos (medíocre campanha em que a soma de empates e derrotas – 14 – foi maior que a de vitórias – 11). O Santos, logo na primeira fase do “mata-mata”, eliminou o São Paulo, líder absoluto da primeira fase (em que todos os clubes se enfrentavam) com 52 pontos. A pontuação do São Paulo, na primeira fase, havia o deixado 13 pontos à frente do Santos; cinco do 2º colocado, São Caetano; e nove do 3º, Corinthians.

O São Paulo, por sinal, teve um aproveitamento de 69,33% dos pontos (mais do que qualquer campeão brasileiro dos pontos corridos, exceção feita ao Cruzeiro em 2003, como já foi dito no começo do texto).
Mas o São Paulo não foi campeão. Muito por conta do regulamento de mata-mata que permitia esse tipo de distorções. O campeão foi o Santos, de campanha medíocre na primeira fase, com os mesmos 39 pontos do 9º colocado (e eliminado) Cruzeiro.

Para os que gostam da improbabilidade e “emoção” do mata-mata (como se um campeonato de pontos corridos não fosse emocionante, que o digam os torcedores do Manchester City), há sempre a possibilidade de acompanharem as copas ou torneios de tiro-curto (com menos datas), como é a Copa do Brasil – torneio que, inclusive, presta bem esse serviço de permitir a um clube menor chegar a um título nacional, a exemplos de Paulista e Santo André.

- Modelos desportivos: EUA vs. Europa (e o Brasil?)

Em meio ao debate “pontos corridos vs. mata-mata” é recorrente argumentos do gênero – “nos EUA, onde o esporte é tratado como um negócio lucrativo, os torneios são decididos em mata-mata”.

É falacioso afirmar ou dar a entender que apenas nos Estados Unidos o esporte é um negócio lucrativo. Basta citar a Premier League inglesa, maior liga de futebol do Mundo (em faturamento) e que, em 2009, chegou ao posto de terceira maior liga desportiva do planeta, ultrapassando a NBA (liga norte-americana de basquete).

Ultrapassada a falácia do “negócio lucrativo”, passa-se a enfrentar outro ponto, este sim mais importante – o modelo desportivo.

Os EUA têm um modelo desportivo bastante peculiar, completamente distinto do europeu (e, também, do brasileiro). São inúmeras as diferenças, como: relação com o poder público; estrutura; forma de competições; e objetivos.

I. Relação com o poder público:

Nos EUA o modelo é totalmente privado, sem qualquer interferência do poder público.
Enquanto na Europa, seja em países como Itália, Espanha e Portugal (com maior intervenção pública) ou em países como Inglaterra e Alemanha (com maior abstencionismo estatal), há uma relação mais estreita com o poder público, que intervém na organização “jurídico-desportiva”.

Nesse quesito, o Brasil se assemelha ao modelo europeu, com a intervenção pública na esfera desportiva, como se verifica em leis como a Lei Pelé ou o Estatuto do Torcedor e, também, em programas como a Timemania.

II. Estrutura:

O modelo desportivo dos EUA não valoriza competições internacionais (é comum eles denominarem seus campeões nacionais de “World Champions”) e possui pouca relação com as federações internacionais. É a chamada estrutura horizontal.

Na Europa, por sua vez, o corpo diretivo é monopolizado, juridicamente, pelas Federações Nacionais, com vinculações às Federações Internacionais. É a estrutura piramidal.

No Brasil, e mais especificamente no futebol, existem as Federações Estaduais (FPF/PE ou FPF/SP, por ex.), que são ligadas à Federação Nacional (CBF), a qual, por seu turno, está vinculada diretamente a uma Federação Internacional (FIFA).

Portanto, em mais um ponto, vê-se que o modelo brasileiro é muito semelhante ao europeu.

III. Forma de Competições:

As competições dos EUA são fechadas e sem mobilidade, não havendo a previsão de ascenso ou descenso e, por isso, tendo regularmente a participação das mesmas agremiações que adquirem o direito de participação através das franquias. Não existe, portanto, ascensão ou rebaixamento – uma equipe pode ser a última classificada da competição e continuará a disputá-la no ano seguinte. É o sistema horizontal.

O modelo europeu encontra seus pressupostos no mérito desportivo, quer dizer, na obtenção dos resultados desportivos em uma competição a fim de se ascender ou descender, bem como de se obter classificação a uma competição internacional.

As competições ocorrem simultaneamente, e um clube pode ser campeão ou chegar a uma competição internacional, como, ao mesmo tempo, corre o risco de ser rebaixado; enquanto que um clube de divisão hierárquica inferior pode ascender através de suas conquistas desportivas e, um dia, almejar chegar a uma competição internacional. É o sistema vertical.

A forma de competição brasileira é idêntica à europeia. No Brasil, há divisões hierárquicas no futebol – tanto em competições nacionais quanto estaduais – e as competições nacionais permitem aos clubes participantes chegarem a competições internacionais (o Campeonato Brasileiro da Série A e a Copa do Brasil dão acesso à Copa Libertadores, organizada pela Conmebol; a Libertadores, por sua vez, dá vaga no Mundial de Clubes FIFA).

E é nesse ponto que o Brasil se diferencia e distancia ainda mais do modelo desportivo dos EUA. O Brasil (assim como os europeus) prima pela mobilidade – a possibilidade de ascensão hierárquica. Já os EUA têm uma forma mais elitista – fechada em si mesma, com a única possibilidade de inserção encontrada através de aquisição de franquia (ou seja, a venda de um espaço na competição).

O formato brasileiro é muito mais democrático, ao ser aberto e interdependente, permitindo a mobilidade.
Por mais que essa mobilidade possa incomodar a alguns setores mais elitistas brasileiros e a um certo grupo de clubes (que por anos se acostumou a viradas de mesa que feriam, diretamente, a competitividade e o espírito esportivo baseado no mérito da obtenção de resultados desportivos), é este o formato de competição no Brasil.

IV. Objetivos:

Nos EUA, os objetivos econômicos ou a busca pelo lucro estão claramente acima dos objetivos desportivos. Lá as competições são tratadas, antes de qualquer coisa, como um negócio.

Na Europa, o objetivo é desportivo – a busca por vitórias e títulos. O sucesso desportivo (ganhar jogos, ser campeão) está acima do sucesso econômico. O lucro é importante, mas o lado desportivo prepondera sobre o econômico.

Verifica-se, portanto, que os objetivos das competições na Europa são os mesmo do Brasil. A lógica desportiva brasileira é pela primazia das vitórias e dos títulos e não a preferência pelo lucro.

Então, ante o exposto, conclui-se que se temos um modelo desportivo semelhante ao europeu; se temos uma estrutura vertical (como na Europa) e vemos o futebol sob a lógica da mobilidade (através da obtenção dos resultados desportivos) e da primazia pelas conquistas desportivas (vitórias e títulos) e não pelo lucro (econômico), nada mais racional e natural adotarmos o sistema de competição que é bem sucedido na Europa, ou seja, o sistema de pontos corridos.

Seria extremamente insensato e incoerente se o Brasil adotasse um sistema de competição baseado em um modelo desportivo tão diferente do nosso.

O Brasil tem uma cultura de modelo desportivo que encontra suas fundações mais profundas na lógica da obtenção dos resultados desportivos, e o sistema de pontos corridos prima pelo reconhecimento ao mérito desportivo – a preponderância do trabalho árduo e regular ao longo de toda a competição.

- Estatuto do Torcedor

O Estatuto do Torcedor, Lei Federal 10.671/2003 (com alterações dadas pela Lei 12.299/2010), tem por escopo a moralização do futebol brasileiro, visando à proteção do torcedor enquanto cidadão e consumidor – garantias de respeito aos regulamentos (objetivos desportivos); segurança e comodidade nas praças desportivas; etc..

Anteriormente, no ponto em que se analisaram os modelos desportivos, referenciou-se que o modelo brasileiro segue o europeu no sentido de haver uma relação em que o poder público intervém na ordem jurídico-desportiva a fim de garantir a organização do desporto.

Pois bem, estamos diante de um exemplo inequívoco de ingerência do poder público no desporto nacional. O nosso Legislativo percebeu a necessidade de intervir no desporto nacional em questões como os regulamentos das competições e a segurança dos torcedores e o Estatuto do Torcedor é fruto desta intervenção do poder público. Intervenção necessária e muito bem vinda, diga-se de passagem.

Acontece, entretanto, que em muitas discussões sobre futebol vê-se o completo esquecimento da lei que “estabelece normas de proteção e defesa do torcedor” (art, 1º do referido Estatuto).
Infelizmente, neste debate entre “pontos corridos e mata-mata” a situação não é diferente. Há quem insista em discutir o assunto sem sequer mencionar a existência de tal norma legal.

Aqueles que querem discutir uma nova mudança na fórmula de disputa (defensores do retorno ao mata-mata) têm que se articular para que o Estatuto do Torcedor sofra uma nova alteração, a fim de que se flexibilize esse ponto na lei.

Vejamos o que diz o texto da lei, ipsis litteris:

“Art. 8º. As competições de atletas profissionais de que participem entidades integrantes da organização desportiva do País deverão ser promovidas de acordo com calendário anual de eventos oficiais que:
(...)
II – adote, em pelo menos uma competição de âmbito nacional, sistema de disputa em que as equipes participantes conheçam, previamente ao seu início, a quantidade de partidas que disputarão, bem como seus adversários”.

Embora a lei não fale diretamente que a fórmula de disputa deva ser de pontos corridos, esse entendimento é de fácil elucidação, bastando para tal uma interpretação simples da imposição legal. O inciso II do art. 8º da lei fala em:

1. Competição nacional.
2. Sistema de disputa em que as equipes participantes saibam previamente:
a) Quantidade de partidas que disputarão.
b) Os seus adversários.

Em qual sistema de disputa é possível os clubes saberem previamente quantas partidas realizarão e quais serão todos os seus adversários?

Isto seria possível em um sistema de disputa de mata-mata? É evidente que não.

Em uma Copa do Brasil, por exemplo, um clube sabe que poderá disputar de X a Y partidas; e que poderá enfrentar o adversário A, B, C, G, H ou I, a depender dos resultados.

Nos campeonatos brasileiros que eram disputados no sistema de mata-mata, um clube começava a competição sabendo que disputaria X partidas, mas que esse número poderia ser maior se fosse para a fase seguinte (ou, eventualmente, houvesse alguma repescagem ou coisa do gênero, como já ocorreu em alguns regulamentos). Contudo, jamais poderia prever quais seriam os adversários nas fases de mata-mata ou mesmo precisar o número de jogos a ser disputado ao longo da competição.

Apenas um campeonato de pontos corridos permite a todos os clubes participantes saberem, previamente, quantos jogos disputarão e quais serão os seus adversários.

Qual o sistema que dá aos clubes uma maior possibilidade de planejamento (tanto desportivo quanto financeiro – vendas de lugares anuais, promoções de marketing, etc.) aos clubes, o de pontos corridos ou de mata-mata?

A resposta é óbvia: pontos corridos.

Foi neste sentido, que os legisladores pátrios procuraram orientar e organizar o nosso ordenamento jurídico-desportivo: garantir a todos os clubes uma maior estabilidade e segurança, à medida que lhes concedem garantias prévias de planejamento, a fim de obterem, através de competência na gestão desportiva, os maiores proveitos desportivos e financeiros.

E é aí se encontra o mais forte argumento favorável aos pontos corridos, a primazia ao planejamento e à organização dos clubes.

- Conclusão:

Pode-se afirmar que para retornar ao sistema de mata-mata é necessária uma alteração no Estatuto do Torcedor, tornando, portando, toda a discussão atual inócua se não se atentar, antes de tudo, a esta limitação legal.

Além da questão legal, é preciso lembrar que o sistema de disputa de pontos corridos está em concordância com toda a lógica da organização jurídico-desportiva nacional, que adota em todas as esferas desportivas, futebol incluído, o modelo desportivo europeu, no qual se preponderam os resultados desportivos e um sistema mais democrático em que se prima pela mobilidade hierárquica dos clubes em detrimento de um sistema elitista, que prioriza o poder financeiro em detrimento dos resultados e das conquistas desportivas.

Concluindo, é preciso ter em mente que o sistema de pontos corridos não é uma mera imposição legal, mas a conseqüência lógica de toda uma estrutura de modelo desportivo. Afinal, a lei (como é o caso do Estatuto do Torcedor) existe dentro de uma lógica – e a adoção dos pontos corridos é fruto natural de um modelo desportivo adotado nacionalmente. É a racionalidade e a lógica acima do contrassenso.

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