terça-feira, 17 de abril de 2012

O impedimento e a evolução do futebol



O futebol é o esporte mais popular do mundo. Um dos fatores para este sucesso em escala planetária é a simplicidade de suas regras, que permitem a qualquer pessoa que possa entender o esporte e praticá-lo (independentemente de suas características físicas ou país de origem).

Há uma regra, contudo, que não é assim tão simples (de ser compreendida e, principalmente, de ser aplicada) e, por isso, gera enorme controvérsia entre torcedores, jogadores, dirigentes e jornalistas esportivos. Trata-se da regra 11 do futebol - a do impedimento.

Em meio às discussões sobre o tema, há, inclusive, quem defenda o fim do impedimento, pois se alega que a regra gera mais controvérsia e, supostamente, distorções nos resultados do que traz benefícios ao futebol.

Quem defende, entretanto, o fim da regra do impedimento, não compreende a importância fundamental que esta regra exerce na estrutura e na dinâmica do futebol.

As regras modelam os comportamentos dos indivíduos em sociedade. No esporte, as regras possibilitam a repetição da prática desportiva. O futebol, ao longo de sua história, passou por diversas adaptações, o que influenciou de forma determinante o modo de praticá-lo.

A regra do impedimento é aquela de maior preponderância na estruturação do futebol como o conhecemos hoje, na medida em que foi a regra que mais influiu na dinâmica do futebol, nas suas variações táticas e nas diversas formas de jogo.

Se a regra de proibição do toque intencional das mãos na bola por jogadores de linha é essencial para a identidade esportiva do futebol (foi a proibição do uso das mãos que diferenciou, definitivamente, o futebol do rúgbi), a regra do impedimento tem importância equivalente para a dinâmica e a definição do que é o futebol.

Mas de que forma uma única regra, e justamente a do impedimento, pode ter tanta influência na dinâmica do futebol?

Em um jogo há uma constante interdependência uns com os outros. No futebol, essa interdependência é essencial para o dinamismo do jogo, uma vez que cada equipe se movimenta e se comporta dentro de campo de acordo com a movimentação da outra equipe.

O futebol é um jogo de ataque contra defesa. Enquanto o ataque tem como objetivo principal chegar ao campo adversário para marcar gols, a defesa busca, de todas as formas, proteger o seu campo, a fim de evitar que o ataque logre êxito em seu objetivo (ou seja, impedir que se marque gol).

E é a regra do impedimento que mais influencia nesta dinâmica – defesa vs. ataque. Usando exemplos extremos, pode-se dizer que uma regra muito rígida beneficiaria a defesa (o que geraria poucos gols), ao passo que uma regra muito frouxa beneficiaria o ataque (haveria muitos gols, o que acarretaria na banalização do ápice de um jogo de futebol). Em ambas as situações, ocorreria uma monotonia, afinal ninguém quer ver um jogo sem gols, como também nenhum amante do futebol se agrada de um jogo em que, claramente, há uma enorme facilidade na marcação dos gols.

A partir destes dois cenários extremos, é razoável afirmar que a regra do impedimento nem pode ser tão rígida, nem tão flexível. E para se chegar a essa conclusão, é preciso que se tenha percebido o papel determinante da regra do impedimento na dinâmica do futebol, na medida em que ela incide diretamente na relação entre defesa e ataque.

Além disso, as mudanças da regra do impedimento ao logo do tempo possibilitaram a maior coletivização do futebol (do jogo dependente de jogadas individuais, passou-se a um jogo de maior toque de bola), bem como o aumento da velocidade do jogo (da lentidão dos avanços ofensivos, passou-se ao jogo mais acelerado, com passes em profundidade).

Em que consiste, afinal, a regra de impedimento?

De forma resumida, pode-se dizer que estará em impedimento o atacante que, no momento do lançamento, estiver na frente do penúltimo defensor.

“Incide basicamente na relação entre ataque e defesa e requer a observação, por parte dos árbitros, principal e de linha, dos posicionamentos e das participações dos jogadores em determinadas circunstâncias de jogo” (TOLEDO, 2000:22).

Passa-se, agora, para a análise das alterações da regra do impedimento, tanto para se compreender o que constitui a regra em si, quanto para se entender a sua importância na evolução da dinâmica do futebol.

Evolução histórica da regra do impedimento

1863

Foi em 1863 que a Football Association (FA, Federação Inglesa de futebol) estabeleceu as regras do futebol.

As origens da regra do impedimento remontam às regras de Cambridge (não esquecer que o futebol nos séculos XVIII e XIX era praticado nas escolas inglesas) de 1848.

Quando a regra 11 - do impedimento - foi estabelecida, junto com as demais regras do futebol, prescrevia que os jogadores que estivessem à frente da linha da bola, estariam em impedimento. Ou seja, para que estivesse “em jogo”, era preciso que o jogador se posicionasse atrás da linha da bola.

Nesta época, o futebol era muito lento, uma vez que inexistia a possibilidade de lançamentos e passes em profundidade e, por isso, o ataque progredia de maneira muito lenta, em progressão. Havia muito contato físico entre os jogadores.

1866

A primeira modificação na regra do impedimento surgiu em 1866.

O jogador estaria impedido se, ao receber o passe, não tivesse entre ele e a linha de gol do adversário três jogadores oponentes – normalmente, o goleiro e dois defensores.

Houve, logicamente, um ganho de dinamismo, pois passou a haver algumas trocas de passes, o que deu um aumento na velocidade ao jogo. Em comparação ao futebol dos dias atuais, ainda era muito lento, pois os defensores se posicionavam de modo não-alinhado, fazendo com que os atacantes, ao efetuarem trocas de passes, ficassem em impedimento (isso gerava muitas paralisações e implicava em poucos gols).

O futebol, esteticamente, dependia das jogadas individuais, dos jogadores mais habilidosos e dribladores, que deixavam todos para trás (ou seja, havia a prevalência do individualismo sobre o jogo coletivo).

1880

Não estaria impedido o jogador que recebesse a bola de um tiro de meta.

1881

Se o jogador recebesse a bola vinda de um escanteio, não estaria em impedimento.

1903

Definiu-se que, embora estivesse em posição de impedimento, se o jogador não afetasse o jogo, não haveria a contrariedade da regra. Ou seja, só seria marcado o impedimento se o jogador interferisse no jogo.

1907

O impedimento foi limitado à metade do campo de jogo. O jogador que estivesse em seu próprio campo, mesmo que só tivesse o goleiro adversário à sua frente no momento em que recebesse o passe, não estaria em impedimento.

1913

Deixa de haver impedimento em bola recebida de lançamento de linha lateral.

1925

Uma das mais importantes mudanças nas regras do futebol. A alteração na regra do impedimento fez com que passassem a ser apenas dois os jogadores de defesa que colocavam um atacante em impedimento (mais frequentemente, o goleiro e um jogador de linha).

Essa mudança alterou a correlação de forças entre ataque e defesa, proporcionando um novo sistema para a organização das equipes, estimulando uma maior diversidade tática, conseqüência direta das novas conformações espaciais dos jogadores em campo, com uma definição mais visível entre defesa, meio-campo e ataque.

O futebol se tornou mais coletivizado, pois passou a haver mais passes, com maior movimentação e mais deslocamentos. A mudança na regra alterou as disposições dos jogadores em campo e propiciou mais dinâmica ao jogo.

Essa modificação na correlação de forças entre defesa e ataque, proporcionou, também, uma diminuição considerável do número de impedimentos e o aumento no número de gols.

1937-38 / 1956

Outra mudança importante ocorreu em 1937-38, com redação mais clara com em 1956, e dizia “que o jogador não estaria impedido ao receber a bola à frente dos defensores se, no momento em que fosse lançado, não estivesse em posição de impedimento” (MORAIS & BARRETO, 2008:413).

1990

Depois da Copa do Mundo de 1990 (de fraco nível técnico e com poucos gols marcados) e em meio a um período em que se discutia o futebol em sua essência, ante a supremacia das defesas sobre os ataques, ocorreu a última grande mudança na regra do impedimento.

Desde 1990-91, estará em impedimento o atacante que, no momento do lançamento, estiver na frente do penúltimo defensor.

Foi mais uma intervenção na regra do impedimento visando à criação de novas tensões do jogo, gerando novos (des)equilíbrios, possibilitando, portanto, uma nova dinâmica ao futebol.

Atualmente, o que diz exatamente a regra 11 da FIFA

Regra 11 – O Impedimento
Posição de impedimento
O fato de estar em uma posição de impedimento não constituirá uma infração.
Um jogador estará em posicionamento de impedimento quando:
Se encontrar mais próximo da linha de meta adversária do que a bola e o penúltimo adversário.
Um jogador não estará em posicionamento de impedimento quando:
Se encontrar em sua própria metade de campo, ou
Estiver na mesma linha do adversário, ou
Estiver na mesma linha dos dois últimos adversários.
Infração
Um impedimento somente será marcado se, no momento em que a bola for tocada ou jogada por um de seus companheiros, o jogador estiver, na opinião do árbitro, envolvido em jogo ativo:
Interferindo no jogo, ou
Interferindo em um adversário, ou
Ganhando vantagem por estar naquela posição.
Não há infração
Não haverá impedimento se o jogador receber a bola diretamente de:
Um tiro de meta, ou
Um arremesso lateral, ou
Um tiro de canto.
Infrações e punições
Por qualquer impedimento, o árbitro deverá conceder tiro livre indireto para a equipe adversária, que será executado no local onde ocorreu a infração.

Como se vê pelo texto, o que a regra de impedimento determina é que o jogador de ataque não possa marcar partindo de qualquer posição. Há limitações impostas pela regra.

São exatamente estas limitações da regra do impedimento que implicam na correlação de forças entre defesa e ataque.  A regra do impedimento moldou os comportamentos das defesas e dos ataques.

A regra molda, porém ela não é estática e não limita de forma restritiva as ações a um leque mínimo de comportamentos. Há que saber interpretar a regra e usá-la para si, ampliando o seu leque de comportamentos (movimentações), dando, portanto, o dinamismo que é conhecido ao futebol.

De forma sucinta, foi exposta a história da regra do impedimento e demonstrou-se o seu papel fundamental na definição do futebol como o esporte é conhecido (e adorado) nos dias atuais.

Recomendação de leitura:

“No país do futebol”, Luiz Henrique Toledo.
“Sociologia do futebol – dimensões históricas e socioculturais do esporte das multidões”, Richard Giulianotti.
“A regra do impedimento e a dinâmica do futebol: uma análise a partir da sociologia figuracional”, Jorge Ventura de Morais & Túlio Velho Barreto.

7 comentários:

  1. Realmente bom texto, mas só não concordo com uma coisa: duvido que com a extinção do famigerado impedimento "haveria muitos gols, o que acarretaria na banalização do ápice de um jogo de futebol." Sempre fui a favor do fim do impedimento, e assisti a muitos jogos amadores, principalmente no Aterro do Flamengo, onde não existe essa regra, e na maioria das vezes foi apresentado um futebol de alto nível, superando até muitos dos jogos profissionais. Todo esporte mudou suas regras com a clara intenção de dinamizar mais o desenrolar da partida, ou seja, aproximar ainda mais o jogador do objetivo, fazendo com isso a alegria do torcedor. O papel da defesa no futebol, como o próprio nome já diz, não é impedir o sucesso do adversário em alcançar o objetivo, que é o gol? Pois bem, sem o impedimento novas estratégias e táticas surgiriam, de ambos os lados, cabendo à equipe que melhor se saísse na aplicação destas estratégias a vitória. Inevitavelmente todas as equipes de futebol se adaptariam à nova realidade. E daí se caso ocorresse um placar mais dilatado? Não é o gol que queremos ver quando saímos de nossas casas, às vezes com nossa esposa e filhos, e como eu que não tenho carro, enfrentamos ônibus lotado, motorista de táxi desonesto e até mesmo bala perdida durante confusões em dias de jogos, já que tudo isso faz parte dos riscos das cidades grandes atualmente? Depois de passar por tudo isso, imagine sair de um estádio com um placar de 0x0 que poderia ter sido outro, mas não foi por causa do famigerado impedimento.

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  2. Primeiro, agradeço pelo comentário e pela possibilidade do diálogo a respeito do tema.

    Sobre o questionamento, eu não tenho dúvidas de que a extinção da regra do impedimento geraria novas estratégias e táticas, afinal as regras modelam os comportamentos dos indivíduos. Portanto, uma nova regra do impedimento (a não existência seria a regra) geraria sim novos comportamentos no esporte.

    Mas é justamente aí que surge o ponto da questão. A extinção do impedimento mudaria o futebol em sua essência e dinâmica. E quando me refiro à dinâmica, falo a respeito das movimentações dentro do campo, na própria coletivização do jogo.

    Ninguém espera ver um jogo que termine em 0x0, mas também ouso arriscar que ninguém, a médio e longo prazo, acharia interessante sair de casa para ver jogos profissionais que acabassem sempre 10x9, 11x10, 12x11... O gol deixaria de ser celebrado como é hoje.

    Quer uma comparação? Handebol. Neste esporte, a defesa do goleiro é muito mais celebrada que o gol. E por quê? O gol é banal, é o "natural" de uma ação ofensiva. A defesa é o excepcional, o mais difícil do jogo.

    Eu, particularmente, não seria tão apaixonado por futebol se o maior momento da partida fosse a defesa do goleiro e não o gol do meu time.

    Abraço!

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  3. Continuo duvidando que os placares seriam sempre 10x9, 11x10,12x11... No início pode até ser, mas depois haveria uma adaptação por parte das equipes. As táticas e estratégias que surgiriam com o fim do famigerado impedimento evitariam isso com o tempo. Como disse lá em cima, no Aterro do Flamengo não existe o famigerado impedimento e os placares não são assim tão dilatados.
    Ainda quero estar vivo para ter o prazer de ver o meu Mengo meter 10x4 no Vasquinho graças ao fim do famigerado impedimento, hehehehe.

    Tecsamp (Ronaldo)

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  4. Olá. A regra não deveria ser abolida, mas sim flexibilizada. Por exemplo, passe dentro da área não deveria ensejar impedimento. É difícil chegar até a área adversária e ainda ter de respeitar a regra do impedimento é muita punição. Portanto, quando um equipe estiver dentro da área com a bola, os atacantes não seriam punidos com o impedimento. Se quiser flexibilizar mais, poderia ser extendida a linha da grande área até a linha lateral, e passes dados a frente dessa linha não acarretariam impedimentos. Teríamos mais gols e não seriam banalizados.

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  5. Excelente trabalho de pesquisa. Entretanto, não vejo o impedimento como algo benéfico ao futebol. Primeiro, porque a privação da oportunidade de gol não é provocada pela equipe que ataca, como numa falta, em que um atleta é impedido de brigar pela posse da bola devido a um contato físico ilícito. Em segundo lugar, acabaria, para a alegria dos torcedores, com as chances de gols criadas pelo adversário devido a preguiça dos marcadores, que reclamam de impedimento (normalmente, são os mesmos que dão condição legal ao oponente) ao invés de ir para o lance e tentar roubar a bola para salvar sua equipe. E atacante livre, após dois defensores, não é sinônimo de gol praticamente consumado, uma vez que o goleiro pode defender ou a finalização ir para fora. A diferença é que os defensores terão de acreditar que podem chegar até o oponente e impedir que o gol aconteça por eles mesmos, sem intervenção de não-jogadores. Tanto o trabalho em equipe quanto a qualidade técnica dos marcadores melhorariam bastante, e seriam os responsáveis por impedir que placares dilatados aconteçam, desde que a equipe seja bem treinada e os jogadores fossem bons também individualmente. Aliás, esse é o espírito do esporte: superação. Além do mais, é muito mais difícil finalizações no gol com pés ou cabeça do que com a mão, o que elimina qualquer suspeita de que, com o fim do impedimento, tenhamos partidas com placares de handball. Nem mais no futsal, em que a regra não existe, temos placares tão dilatados.

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